A matemática Jaqueline Godoy Mesquita, de 37 anos, estuda equações diferenciais com retardos, importantes para descrever variações em um determinado fenômeno como a administração de medicamentos, o comportamento das doenças e as flutuações do câmbio monetário. A doutora e professora da Universidade de Brasília foi a vencedora na categoria Matemática do Prêmio Mulheres na Ciência, em 2019.
“Depois que ganhei o prêmio, a matemática que desenvolvo começou a ter muita visibilidade e percebi que muitas mulheres começaram a ver em mim uma representatividade. O prêmio tem esse papel de dar mais visibilidade para a ciência que as mulheres estão desenvolvendo no país e que muitas vezes ficam apagadas”, argumenta. A premiação já contemplou mais de 115 jovens pesquisadoras com bolsas de R$ 50 mil cada.
O programa Mulheres na Ciência, que este ano chega a sua 18ª edição no Brasil e completa 25 anos no mundo, está com as inscrições abertas até o dia 17 de julho. Para participar, é necessário que a candidata tenha concluído o doutorado a partir de 1º de janeiro de 2015, sendo que, para mulheres com um filho, o prazo se estende por mais um ano e – para quem tem dois ou mais filhos – o prazo adicional será de dois anos. A cientista deve ter residência estável no Brasil, desenvolver projetos de pesquisa em instituições nacionais, entre outros requisitos. O regulamento completo pode ser visto na internet.
Representatividade
Para a pesquisadora, os desafios de ser mulher e cientista são grandes. “Ainda mais na área da matemática, uma área que a representatividade feminina é muito baixa. E especialmente quando vamos crescendo ao longo da carreira, acontece o ‘efeito tesoura’, as mulheres são cortadas ao longo da sua trajetória”, revela.
O estudo mostrou que 62% das meninas dizem desconhecer pessoas que trabalham nas áreas de STEM (Ciência,Tecnologia, Engenharia e Matemática, na sigla em inglês), enquanto 42% dos meninos afirmam não ter tido contato com alguém que exerça uma dessas profissões. Quando a pergunta é sobre mulheres profissionais nessas áreas, o percentual de desconhecimento entre meninos e meninas sobe para 57,1%. O estudo inédito Meninas curiosas, mulheres de futuro pode ser lido aqui.
Outro ponto que Jaqueline cita abrange as microviolências diárias que as mulheres passam nas áreas majoritariamente masculinas. “São brincadeiras que soam como brincadeiras, mas que acabam sendo microviolências. Além da questão de que mulheres são muito mais interrompidas em reuniões, e eu também sinto isso”, confessa.
Jaqueline é vice-presidente da Sociedade Brasileira de Matemática e assumirá o posto de presidente da instituição em agosto deste ano. “Serei a terceira mulher nessa posição e a mais jovem entre elas. A matemática ainda é altamente masculinizada no país”, lamenta.
Pesquisa divulgada no encontro Gender Summit, em 2021, já mostrava que as pesquisadoras ocupam apenas 2% de cargos de liderança em ciência e tecnologia.
Em 2022, quem ganhou o prêmio na categoria Ciências da Vida foi a farmacêutica Gisely Cardoso de Melo, doutora e pesquisadora da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, do Amazonas. O projeto que ela desenvolve investiga duas hipóteses para a recorrência da malária e pretende ajudar a população da região amazônica.
Ela concorda com a colega premiada em matemática. “O prêmio ajudou na divulgação do meu trabalho, no reconhecimento do trabalho desenvolvido pelo meu grupo e a projetar as pesquisas, além de poder trabalhar com outros grupos de pesquisa”, relata.
Apesar da importância de suas pesquisas, Gisely destaca que o maior desafio em ser mulher e cientista é mostrar que pode desenvolver as pesquisas, mesmo com tantas atribuições.
“Apesar de o mundo querer equilibrar as atividades entre homem e mulher, muitas vezes ela [a mulher] fica mais sobrecarregada: o maior desafio é você mostrar para outras pessoas que você consegue trabalhar sendo mulher, que consegue desenvolver boas pesquisas e produzir resultados relevantes, apesar das atribuições com casa e filhos”, explica.
Currículo desvalorizado
“Nos últimos 10 anos da minha vida, tive três filhos, comecei e terminei o doutorado, trabalhei em duas faculdades, publiquei dois artigos do doutorado e outros artigos como coautora, mas ainda assim é muito difícil, tive que remar contra a maré e o mínimo que consegui produzir ainda assim é considerado pouco”, conta a nutricionista e doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Gisele Almeida de Noronha.
Para ela, a comparação mostra a desigualdade para quem tem que conciliar a pesquisa científica com a maternidade. “Se for comparar com amigos que tiveram filhos nesse período, mas que, por serem homens, já tiveram uma vida totalmente diferente, ou com amigas que não tiveram filhas, ambos conseguiram construir mais do que eu profissionalmente. Isso dá para perceber o quanto a maternidade fez com que eu produzisse menos”, salienta.
Na opinião dela, é difícil fazer pesquisa cientifica com tantas demandas para as mães. “O horário de trabalho e a forma de produzir são para adultos que não dão conta de crianças. Na ciência, cada vez está mais difícil produzir trabalhos porque demanda tempo, dedicação e financiamento de pesquisa. Como vai correr atrás disso tendo que dar conta de crianças em casa?”, questiona, indignada.
Ela lembra que, durante a pandemia, já com dois filhos, produzir foi muito mais difícil. “Ficou aquela discussão: ‘estou até com muito tempo livre, estudando mais, conseguindo produzir mais’, diziam os homens cientistas’, mas, para nós, mulheres com filhos, foi muito mais trabalhoso para escrever um texto; eu era interrompida constantemente, levava mais tempo para conseguir finalizar um trabalho”, recorda.
Com o terceiro filho, ela teve que sair do trabalho em uma faculdade pela incompatibilidade de horário. “Mas, com a ajuda de amigas e com reconhecimento do meu trabalho, consigo produzir como coautora de alguns trabalhos, não remunerados, mas que ajudam a manter o meu currículo”, avalia.
Atualmente desempregada, Gisele também faz revisão de trabalho científico por especialistas da área do conhecimento do trabalho, a chamada avaliação por pares. “É um trabalho que não pode ser remunerado para manter a imparcialidade. Faço para manter um vínculo com a ciência”, diz.
A pesquisadora conta que as mães são prejudicadas na avaliação dos currículos, que consideram não só a qualidade, mas também a contagem de artigos publicados.
“Até um tempo atrás, a avaliação dos currículos era [sobre] os últimos dez anos de profissão. Agora, abriu um concurso na UFPE [Universidade Federal de Pernambuco} e teve uma mudança para mulheres com filhos; nos últimos cinco anos para cada filho que a mulher teve, ela ganha mais dois anos de avaliação do currículo, mas houve uma redução, ao invés dos últimos dez anos, estão avaliando os últimos cinco anos. Por exemplo, o artigo mais valioso que tenho fiz há 11 anos, então já não conta. É como se eu tivesse o currículo pela metade”, lamenta.
Apesar disso, ela acredita que as mudanças nas análises de currículo para a mulher que é mãe são importantes. “É uma maneira de minimizar esse ‘prejuízo’ que temos, de redução da produção científica durante a infância dos filhos”, acentua.
Ela destaca que, com a sobrecarga maternal, a consequência é o menor número de mulheres nas ciências. “A ciência perde mulheres pesquisadoras e coletivamente acaba perdendo também porque as mulheres – por conta desse trabalho extra de cuidados – têm um olhar na ciência que o homem não tem dessa experiência de vida prática. Acaba sendo um olhar mais limitado”, diz.
Bolsa cortada
“Minha bolsa foi cortada sem alarde, sem notícia no jornal, dois anos atrás pelo meu crime de escolher ser mãe durante a pós-graduação”, conta a pesquisadora Ana** sobre o período em que perdeu a bolsa do programa de mestrado, o qual sustentava as duas filhas – uma recém-nascida – e o marido, que perdera o emprego no começo da pandemia. Para concessão de bolsa de estudos, é preciso ter dedicação integral às atividades do programa de pós-graduação, ou seja, o pesquisador não pode ter outro emprego remunerado.
Com a certidão de nascimento da bebê, nascida em julho de 2021, e ainda na vigência da bolsa, ela deu entrada no processo de licença maternidade. “Perguntei quem faria a comunicação sobre a licença maternidade para a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), conforme está na legislação. Mas, o coordenador do programa respondeu que não haveria licença maternidade e a prorrogação da bolsa. Ele considerou apenas a Portaria Nº 52, de 26 setembro de 2002, da Capes. Então informei a lei sobre a prorrogação dos prazos nos casos de maternidade e que é superior a esta portaria interna e esperei que entrassem em contato com a Capes. Estava com o bebê recém-nascido e sem condições de ficar cobrando que os servidores públicose fizessem o serviço deles”, afirma. De acordo com a lei, ela teria direito a mais quatro cotas da bolsa.
Mas isso não que aconteceu. “Em dezembro de 2021 não recebi minha bolsa. Foi sem nenhum aviso prévio. A Capes não foi informada, conforme previa a lei, de minha solicitação de prorrogação em virtude da licença maternidade e encerrou a minha bolsa. Minha filha me cobrando presente de Natal e eu sem dinheiro para comprar comida, quem dirá presente e ainda no meio da pandemia”.
Bolsa
Ana conta, ainda, que, após o recesso, a coordenação do programa entendeu que havia cometido o erro, mas não era possível reverter. “A ajuda veio por meio de uma outra modalidade de bolsa dentro da universidade que depende de fontes diversas e conseguiram me inserir, mas só recebi a primeira cota dessa bolsa em maio. Fiquei entre dezembro e final de maio completamente sem bolsa”, reclama.
Emocionada, ela frisa que contou com a ajuda de alguns professores. “Eles se juntaram, pegaram partes de seus próprios salários, o que deu quase uma cota, foi o que salvou nossas vidas em dezembro, isso realmente foi muito acolhedor, fiquei muito grata”, reconhece.
Mas os desafios continuaram nesse período. “Independentemente do que estivesse passando, ainda tinha que defender [a tese] até junho e reescrever a dissertação, já que, em função da pandemia, tive que mudar o projeto anterior e começar praticamente do zero. Estava com um bebê novo e em uma circunstância peculiar de pobreza nos termos da lei, estávamos naquele momento com menos de meio salário mínimo per capita [para cada indivíduo]. O que tinha de comida em casa dava para as crianças. Por fim, fiz uma dissertação muito aquém do que eu poderia ter feito se as circunstâncias estivessem um pouco melhor”.
Mesmo em situações normais, ela destaca que os desafios das cientistas são grandes. “As mais de 40 horas que se passa no laboratório durante a semana não se resumem a isso. Você vai para casa e continua tendo uma série de demandas pertinentes a pós-graduação, sem contar as atenções à família, tenho uma criança atípica que gera demandas específicas. Além de ser pós-graduanda, de ser mãe, também sou uma pessoa e tenho minhas necessidades pessoais, tenho demandas de saúde razoavelmente importantes, pois sou deficiente física. Além disso, não tenho direitos trabalhistas, na pós-graduação não tem nada disso”, finaliza.
Apesar de todos os obstáculos, ela conseguiu terminar o mestrado e ainda quer seguir para o doutorado. “Mas estou tentando conseguir algum nível de estabilidade antes disso. Sou uma pesquisadora nata que descobriu que fazer pesquisa poderia ser uma profissão”.
* Colaborou Camila Boehm
**Ana é nome fictício usado a pedido da entrevistada que prefere não se expor
Fonte: Agência Brasil